Book – I Circled the island, and things started to look on themselves

Edition: Hélio Marques Pereira

Design: Jaime Narváez

Prepress: La Troupe

Printed: Artes Gráficas Palermo

ISBN: 978-84-127753-4-1

DL: M-4214-2024

I Circled

As imagens presentes no livro e na exposição I Circled the Island and Things Started to Look on Themselves (doravante, Circled) foram feitas com uma câmara de médio formato em negativo de cor de 6×4,5 cms na Ilha da Culatra, entre 2019 e 2023.

Nem sempre a relação entre o instrumento de observação e o que se pode observar através dele é considerada no trabalho fotográfico. Regra geral, recorremos ao negativo – por oposição ao ficheiro digital – para conseguir o efeito visual do próprio grão e por uma vontade quase anacrónica de conviver com um tempo mais denso, mais texturado. O processo levanta algumas questões técnicas e metodológicas quanto ao processamento da luz e ao tempo de reação às imagens criadas. O negativo é uma superfície material transparente sensível à luz. Torna mais opacas as partes que recebem mais luz e mais transparentes as partes que recebem menos, numa escala entre a transparência e o inverso tonal da cor representada. O positivo consegue-se projetando luz através do negativo sobre um papel também sensível à luz, dando origem à imagem fotográfica. O ficheiro digital, por seu turno, é comummente entendido como um conjunto de zeros e uns a que falta a materialidade do negativo. Por não ter suporte material, tem de ser observado num ecrã. Aqui, a imagem é sempre positiva. O excesso de luz conduz, não à opacidade, mas a um sinal elétrico que persiste como informação nervosa mesmo quando já não tem informação visual. Podemos associar a relação negativo-positivo do processo analógico com a dialética da negatividade de Byung-Chul Han e o processo positivo da imagem digital com a violência neuronal que o mesmo autor apresenta como contraponto da primeira em A Sociedade do Cansaço. Com a dialética da negatividade, Han fala de um sistema baseado na imunologia em que o diferente é excluído como processo de manutenção da identidade. Um processo que se reflete, não só no ser humano, mas em grupos, comunidades, países, corporações… em todos os processos nos quais uma fronteira claramente definida permite uma gestão da informação. A violência neuronal, por outro lado, surge em associação com as condições em que essa diferença é suprimida. O autor aponta as doenças que despontaram no final do séc. XX e no início deste século, como as síndromes de borderline ou de burnout e o Transtorno de Défice de Atenção e Hiperatividade como sintomas de um processamento por integração e acumulação e não por exclusão. No ficheiro digital, a sobre-exposição provoca isso mesmo, não a perda de informação, mas uma indiscernibilidade da informação em relação ao sinal que é provocada pelo excesso. A luz está lá, mas é demais.

Circled retoma esta dialética da negatividade como forma de pensar a positividade contemporânea. O processo entre o negativo e o positivo faz parte de um jogo que se desenvolve no tempo – a questão metodológica que referi no início. O autor tem de esperar que os rolos sejam revelados para poder ver as imagens, o que lhe dá um tempo de reflexão que é propriamente o tempo do trabalho autoral; o tempo em que as ideias sedimentam e permitem que se criem contextos de leitura sobre o tema. Ao mesmo tempo, no entanto, este processo afasta o artista da impressão direta da sua própria experiência fenomenológica do espaço que fotografou e abre um processo de vai-e-vem entre a impressão fenomenológica, necessariamente fragmentária, do lugar fotografado, e a sua organização formal no trabalho final. Em A Intuição Filosófica, Henri Bergson diz-nos que o filósofo tem uma intuição sobre o funcionamento do mundo que lhe chega instantaneamente como um todo, como uma imagem única. Diz-nos que o autor passa o resto do tempo a tentar explicar esta intuição, apenas para tornar a explicação cada vez mais distante da intuição original, fazendo de cada camada de explicação uma camada de ocultação. O resultado constitui, por isso, um paradoxo que acentua ainda mais a dialética da negatividade em que se insere. O trabalho não poderá consistir apenas da reprodução da imagem como coisa única, porque precisa do contexto que a própria experiência do autor lhe dá. Esta experiência apenas se consegue por um processo em que cada nova camada de explicação precisa de uma nova camada de contextualização; ao mesmo tempo, por outro lado, o próprio acumular de camadas que permite ao autor explicar esta relação entre contexto e intuição torna impossível o acesso à intuição instantânea do autor.

Circled coloca-nos numa situação semelhante. Há uma ideia, um tema, uma impressão fugidia do efeito da luz sobre as coisas do mundo que desperta a imaginação de um trabalho que, como um jogo, nos coloca entre a ideia do território como espaço organizado e a experiência fenomenológica, fragmentária, da presença nele. A ideia do trabalho nasce de uma dessas impressões fugidias sobre o efeito da luz, neste caso, sobre a própria presença na ilha sob o sol do meio-dia. Uma luz que consegue, ao mesmo tempo, mostrar e ocultar tudo. Mostrar porque incide com a mesma força sobre toda a superfície do território. Ocultar porque não permite que se olhe diretamente para nada. Olhar a luz diretamente cega-nos; olhar em volta mostra o reflexo ainda excessivo da luz como um excesso de positividade. Em Circled, somos deixados a circular entre pequenos fragmentos que nos vão servindo como um guia mais sensorial do que intelectual, mais fenomenológico do que territorial. No fim, fica este fascínio pela luz, tão próprio da fotografia. Não chegamos a estar perdidos porque as imagens vão remetendo umas para as outras numa ligação entre fragmentos, mas também não chegamos a uma conclusão. Seguimos, presos neste espanto circular, neste jogo de infinitos em que cada vez mais, o excesso parece o único sentido.

Miguel Rodrigues

Sobre Drift (2019)

Para lá da superfície, a corrente; a corrente e a deriva; ou seja: Drift. Não seria preciso dizer mais do que o título para descrever o que move este primeiro livro de Hélio Mar-ques Pereira, um de cujos motivos, o apelo as superfícies, é, ironicamente, um apelo de superfície.

Não que seja de pouca importância. A fotografia em estilo snapshot, enfatizan-do (com uso frequente de flash) reacções espontâneas à superfície da vida; o interesse pelas estrutruras automáticas do olhar, reveladas ao próprio fotógrafo por via de uma acumulação de gestos por instinto; a sugestão implícita de um sujeito de passagem ou em trânsito; — tais elementos fariam supor semelhanças, por exemplo, com American Surfaces de Stephen Shore. Porém, o trânsito de Shore era disciplinado e exaltava um certo sentido de pertença (lidava com um momento específico num país específico). Já este livro descreve uma deambulação livre por uma paisagem asiática inespecífica, apetece dizer, por uma cidade compósita, ficcional: uma reconfiguração de fragmentos de cidades de diferentes países, não se sabe exactamente quais, nem quando. (O livro tem imagens do Tóquio e de Banguecoque feitas em 2018, mas este facto é negligen-ciável.) Não existem neste caso anotações meticulosas ou um jogo autoconsciente com regras definidas; apenas, um contínuo de imagens e um deixar-se ir — imagens que al-iás não são, em si mesmas (e nisto culmina a desanalogia com Shore), a questão.

Em Drift, a experiência da fotografia tem sempre prioridade sobre as imagens em si (e portanto sobre a fidelidade às superfícies). As imagens só readquirem dig-nidade visual por via do modo como o livro as coopta retrospectivamente, criando um movimento na direcção de uma síntese da experiência da deambulação, gerando a ficção de um fluxo. Fluxo é a palavra certa. Entre os fotógrafos vocacionados para a exploração do não-eu, existe um espectro que vai do fotógrafo-investigador ao fotó-grafo que flui: por assim dizer, do cientista social ao surfista fenomenológico. Hélio pertence a esta última categoria. Que motivos flagrantes deste livro sejam também os elementos aquáticos e os elementos tubulares, símbolos do fluxo e da passagem, não deixa de ser sintomático, motivos que apontam (de novo) para uma prioridade da ex-periência da fotografia sobre a fotografia, se quisermos, para uma prioridade do fluxo sobre a espuma. Tal é sinalizado ainda por um (desconcertante) quase desapego pela imagem — desapego que casa bem com as escolhas formais e materiais da peça-livro — em nome de sugerir ao leitor antes um certo tipo de experiência: não uma flânerie mas a busca de um fluxo; uma busca mais severa consigo própria que o colorido do conjun-to poderia fazer pensar.

Se há fotógrafos para os quais a fotografia é uma ocasião para encontrarem coisas no mundo, para Hélio Marques Pereira ela é, sobretudo, um modo de se perder no mundo, de facto, de nele se deixar perder — de se deixar levar. Aquela busca de um fluxo pode por isso ser redescrita como a busca de uma experiência de deriva. O ‘eu’ deste livro caracteriza-se pela tentativa de se esquecer de si mesmo no processo de ser levado em deriva. Mas isto levanta a pergunta: o que é, para um fotógrafo, tal exper-iência de deriva senão um procurar perder-se das suas próprias referências fotográficas? Que algumas dessas referências sejam reconhecíveis (ecos da fotografia contemporânea europeia e japonesa) significa que o processo de se perder delas seja inseparável do processo de se esquecer daquilo que se acha que uma fotografia deve ser. A experiência de deriva deste livro expressa-se no modo como um ‘eu’ procura libertar-se não já do peso da tradição mas do peso da própria contemporaneidade.

Vejo a cidade asiática desconhecida deste livro como um símile da contempo-raneidade, um território em cujas superfícies esta projecta indiscriminadamente os seus fantasmas, ou talvez, em cujas superfícies se projectam os fantasmas de um ‘eu’ flutu-ante, fotográficos e existenciais, um ‘eu’ que ao mesmo tempo os reconhece e deles se despede sob o ponto de vista não de um turista contente por se ter perdido mas de uma garrafa de plástico levada pelas águas. Que isto presume uma grande chuva anterior, um ciclone pessoal, parece-me necessário e evidente, mas o livro de Hélio Marques Pereira tem a elegância de não o dizer. Percebemo-lo pelo silêncio. O que torna este livro um grande livro sobre a aceitação: a aceitação circunspecta das superfícies, e para lá das superfícies, a aceitação da corrente; a aceitação da deriva.

Humberto Brito – Novembro de 2020


Looking In Different Ways 

As questões de confronto entre o natural e o cultural são mais atuais do que nunca, e preocupam muitas das disciplinas que procuram decifrar o mundo. O próprio conceito de natureza parece complexificar-se, mas se nos quisermos concentrar numa das suas vertentes, enquanto essência das coisas, este trabalho fotográfico dá-nos algumas linhas de reflexão. 

As imagens do projeto Drift selecionadas para esta exposição centram-se no conflito entre o natural e o cultural, na sua antítese ecológica, se entendermos o conceito de ecologia na sua versão expandida. 

Nelas subjaz uma tensão permanente entre a evocação dos elementos naturais e a sua releitura ou incorporação no quotidiano urbano e tecnológico. A perspetiva de um futuro robótico, alheado da ordem da natureza das coisas, é anunciado nestas imagens que nos revelam também um mundo de novas alianças inusitadas. Em que o natural existe apenas através da sua enunciação pictórica, ou da sua pertença fora de contexto.

Os elementos naturais destes ambientes fazem parte de um mundo construído sobre a artificialidade, daí que a sua presença nos mesmos nos pareça absurda e paradoxal.  O estilo direto e excessivamente luminoso com que são fotografadas relega-as para uma esfera familiar mas estranha, em que não destrinçamos qual a origem de cada uma das suas partes e qual o lugar certo da imagem no mundo que reconhecemos. 

O mundo que evocam é o da estranheza perante o real, perante um mundo em metamorfose cujos contornos não cessam de se transcender.

Um mundo em que a deriva parece suceder às relações outrora originais e congregadoras, para nos confrontar com uma nova configuração do real que ainda nos parece surreal.  

Emília Tavares

As questões de confronto entre o natural e o cultural são mais atuais do que nunca, e preocupam muitas das disciplinas que procuram decifrar o mundo. O próprio conceito de natureza parece complexificar-se, mas se nos quisermos concentrar numa das suas vertentes, enquanto essência das coisas, este trabalho fotográfico dá-nos algumas linhas de reflexão. 


As imagens do projeto Drift selecionadas para esta exposição centram-se no conflito entre o natural e o cultural, na sua antítese ecológica, se entendermos o conceito de ecologia na sua versão expandida. 


Nelas subjaz uma tensão permanente entre a evocação dos elementos naturais e a sua releitura ou incorporação no quotidiano urbano e tecnológico. A perspetiva de um futuro robótico, alheado da ordem da natureza das coisas, é anunciado nestas imagens que nos revelam também um mundo de novas alianças inusitadas. Em que o natural existe apenas através da sua enunciação pictórica, ou da sua pertença fora de contexto.


Os elementos naturais destes ambientes fazem parte de um mundo construído sobre a artificialidade, daí que a sua presença nos mesmos nos pareça absurda e paradoxal. O estilo direto e excessivamente luminoso com que são fotografadas relega-as para uma esfera familiar mas estranha, em que não destrinçamos qual a origem de cada uma das suas partes e qual o lugar certo da imagem no mundo que reconhecemos. 


O mundo que evocam é o da estranheza perante o real, perante um mundo em metamorfose cujos contornos não cessam de se transcender.


Um mundo em que a deriva parece suceder às relações outrora originais e congregadoras, para nos confrontar com uma nova configuração do real que ainda nos parece surreal. 


Emília Tavares PT